“Esquecemo-nos de valorizar aquilo que existe durante o tempo em que vivemos”

Cláudia Emanuel é natural da Vacariça e defendeu a tese de mestrado em 2008 e, pouco antes, havia terminado a licenciatura em cerâmica. Em 2010 começa a jornada do doutoramento, que foi interrompido por questões familiares, mas que termina em 2021.

Para a sua tese de mestrado fez o inventário dos concelhos abrangidos pela Região Demarcada da Bairrada (Anadia, Mealhada, Cantanhede, Oliveira do Bairro, Águeda, Coimbra, Aveiro e Vagos, apesar de alguns não na sua totalidade), de azulejos entre 1850 e 1950.

“Defini o 1850 porque só a partir desta data é que a azulejaria se volta para o exterior dos edifícios. Até aqui ela estava confinada ao interior das casas. No início do século 19, a emigração dos portugueses para o Brasil foi significativa, país onde a utilização de azulejos no exterior é muito mais evidente. Quando os portugueses regressam trazem esse hábito”, explica.

É aproximadamente a partir do ano de 1850 que se começa a aplicar cada vez mais os azulejos nas fachadas dos edifícios. É aproximadamente 100 anos depois que se começa a perceber que esta moda poderia estar a perder-se. Anos mais tarde, quando a arquitetura e o design querem voltar a introduzir os azulejos nas construções, o fabrico já não era tão artesanal.

É neste período que deixamos de ter a azulejaria chamada de pré-industrial (quando havia ainda muito processo manual) e passamos a ter uma indústria mais evoluída, que permite que o azulejo tenha um custo muito mais reduzido e seja mais duradouro.

“Quando pensamos na década de 70, aquilo que perdemos no fabrico da azulejaria tradicional, ganhámos na elaboração dos padrões. Aqui dá-se um boom maior de azulejos na fachada. Aqui começamos também a depreciar um pouco os azulejos e vamos associá-los à casa de banho. Porque vai passar a ser usado de forma indiscriminada, quer precisamente para as casas de banho, quer para a cozinha, quer para uma fachada”, explica-nos.

“Dou a mesma importância a um azulejo pintado há 100 anos ou um que tenha sido pintado no ano passado. Temos que nos lembrar que aquilo que temos em 2023 foi aquilo que preservamos até aos dias de hoje. O mesmo acontecerá daqui a 100 anos. O azulejo que fabricamos hoje, daqui a 100 anos, se preservado, terá outra importância”, diz a historiadora.

Atualmente a legislação diz que, antes de retirar os azulejos da fachada de uma casa, tem que ser pedida autorização à Câmara Municipal para o fazer. A autorização pode ser dada, ou não, mediante diversos critérios. Cláudia dá pareceres a diversas autarquias e é difícil encontrar um padrão para estas avaliações, sendo que os casos são avaliados caso a caso.

Cláudia Emanuel deu aulas no ensino secundário durante 12 anos, sempre na área das Artes e é uma área que sempre gostou. As dificuldades de colocação numa área geográfica próxima da área de residência fizeram com que se afastasse. Em 2013 regressou a “casa” e trabalhou no Arquivo e Património da Santa Casa da Misericórdia da Mealhada.

O azulejos tornaram-se uma paixão e começa a trabalhar de forma independente a inventariar azulejos, seja para autarquias ou para outras entidades. Não deixou o arquivo de parte e manteve esta vertente fazendo o arquivo de várias instituições.

“Não acho que seja um trabalho solitário. Habituei-me a trabalhar quase sempre sozinha e sem ver outras pessoas. Também fui criando as minhas próprias estratégias de foco e rotina”, diz-nos.

A sua tese de mestrado foi sobre azulejaria de fachada e deu enfoque a um dos edifícios mais emblemáticos da Bairrada: o Palace do Bussaco. A agora unidade hoteleira é toda revestida por azulejos de Jorge Colaço. Foi aqui que nasceu o bichinho por este pintor de azulejos.

“Procurei por um pintor que tivesse tido um trajeto de alguma forma parecido com o meu, que primeiro foi pintor de telas e só depois de azulejos. Eu própria também comecei pela pintura. Acabei por ter mais afinidade por Jorge Colaço pela proximidade geográfica ao Palace do Bussaco”, explica.

A tese de doutoramento acabou por ser sobre o pintor, onde abordou a versão de pintor de telas e de azulejos de Jorge Colaço. À medida que começou a estudá-lo foi-se apercebendo que a sua obra estava muito pouco explorada e descobriu centenas de obras e esboços.

“A minha admiração por Jorge Colaço foi ficando maior à medida que fui inventariando os trabalhos dele. Já ultrapassei os mil painéis dele, quando até então só estavam descobertos cem”, diz-nos Cláudia Emanuel.

“Não conseguimos olhar para os azulejos apenas pelos elementos decorativos que neles encontramos. Muitos têm uma função decorativa, mas outros também informativa ou até religiosa. E conseguimos atribuir-lhes valor e importância olhando também para o seu contexto e história”, diz-nos.

A diversidade de materiais que hoje existe no mercado para a decoração de fachadas faz com que a utilização do azulejo fosse caindo em maior desuso. No entanto ainda é opção para muitas pessoas.

“Temos tendência em valorizar mais aquilo que é antigo. E esquecemo-nos de valorizar aquilo que existe durante o tempo em que vivemos. O mesmo se aplica aos azulejos. Se tirarmos azulejos com 10 anos, significa que daqui a 90 anos ou mais, perdemos azulejos históricos”, diz-nos.

Cláudia explica-nos que, muitas vezes, é mais fácil replicar e copiar um azulejo que tenha sido pintado à mão, do que um industrial com muitos anos. Isto porque para replicar um azulejo industrial antigo teríamos que replicar toda a máquina e técnica usada nas indústrias mais antigas, ao passo que um azulejo manual apenas implica um pintor.

Quando começa a inventariar uma localidade, Cláudia Emanuel pega num mapa e percorre rua a rua, viela a viela, lado esquerdo, lado direito. É nas fachadas, muros e outros edifícios que encontra os azulejos que mais tarde passa para o papel. Não há outra forma de fazer o inventário sem ser procurando e olhando.

Quanto aos azulejos no concelho de Anadia, eles são, maioritariamente representativos de santos ou de motivos religiosos. Há também muita representação de azulejos da Fonte Nova (antiga fábrica). A técnica de aerógrafo também é vista num edifício na Praça do Município em Anadia e numa casa na Curia, exemplares únicos na Bairrada.

Sobre o futuro não tem dúvidas de que continuará a estudar azulejos, isto porque sabe que ainda há muito para se descobrir e desbravar terreno. Apesar de se dedicar a área há 20 anos, sente que ainda é pouco.

“Continuo a dedicar-me a esta área exatamente com a mesma paixão desde o primeiro dia. Gosto, hoje, muito mais de azulejaria do que gostava há 20 anos. Porque agora conheço muito mais e sei muito mais. Há todo um desbravar de terreno que ainda gostava de fazer”, confessa.

Paralelamente aos azulejos, o arquivo é outra das suas paixões, apesar de que mais pequena. E quer mantê-la em paralelo com o estudo dos azulejos.

Cláudia admite que terá ido para o mundo das artes por influência do seu pai, também ele professor na área, mas que os azulejos acabaram por se ter cruzado na sua vida, ou que o caminho da sua vida a terá levado até aí. O mesmo com os arquivos.

Leciona, na Universidade Sénior da Curia, nas áreas de azulejaria e, com os seus alunos, fez diversas visitas às ruas do concelho de Anadia, para conhecerem aquilo que existe na sua terra. Confessa que a experiência tem sido muito enriquecedora.

“Têm sido anos ótimos, de muitas histórias e, principalmente, de muita sabedoria. São pessoas muito interessadas e que estão ali porque querem. Aprendi mais com eles do que eles comigo. Há pessoas que nunca tinham pegado num pincel e agora estão a pintar um quadro. É das melhores experiências que tive”, diz-nos.

Está, neste momento, a escrever dois livros: um sobre os azulejos de Oliveira do Bairro (no seguimento do inventário que fez no concelho) e outro sobre a azulejaria ao nível nacional (dividido pelos 21 distritos portugueses).

“Vejo-me, um dia, a voltar a estudar. Gosto de aprender, de saber mais, descobrir. No meu doutoramento ficou por estudar facetas de Jorge Colaço e o bichinho ficou cá sempre. Ele era uma pessoa tão expressiva naquilo que escreveu e pintou, que me parece uma pessoa que conheço, que faz parte do meu dia-a-dia”, diz.

 

 

Curriculum Vitae

Cláudia Emanuel Franco dos Santos, 45 anos, natural de Vacariça (Mealhada).

Licenciada em 2001 pela Escola Universitária das Artes de Coimbra (ARCA/EUAC) em “Pintura” e em 2008 em “Cerâmica”, pela mesma universidade.

Pós graduação em 2005 pela Universidade Portucalense, Porto em “Património Artístico e Conservação”

Mestre pela Universidade Portucalense do Porto (2007) em “Património Artístico e Conservação” com dissertação subordinada ao tema “Artes decorativas nas fachadas da arquitectura bairradina. Azulejos e fingidos (1850-1950)”.

Doutorada pela Universidade Católica Portuguesa, Porto (Escola das Artes) em “Estudos do Património”, com a tese “A obra azulejar de Jorge Rey Colaço (1868-1942) em Portugal”.

Pós-graduação em 2022 em Arquivística Histórica na Universidade Nova de Lisboa – FCSH.

Presença em dezenas de formações e cursos livres, vencedora de prémios na área dos azulejos, quase duas dezenas de publicações, oradora em dezenas de colóquios ou conferências, presença em dezenas de exposições.

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