Um dólar e oitenta e sete cêntimos era tudo quanto Della houvera arrecadado para poder comprar um presente de Natal para o seu marido James Dillingham Young com quem houvera casado no início do ano que terminava.
Della tinha dezanove anos e Jim vinte e dois e ambos tinham zarpado dos seus lugares de nascença ao encontro de um novo espaço para viverem.
E o Natal era já no dia seguinte.
Estamos nos finais do século XIX e a luta pelo reconhecimento da mulher como um ser igual ao outro que pululava a terra e a usava como animal de serviço e de procriação, era ainda, um princípio que gerava repúdio ao poder estabelecido … político, religioso, económico … ao pôr em causa o ancestral comportamento submisso da mulher.
Tal realidade era impeditiva da presença, em segurança, da mulher no mercado de trabalho.
Della contava e recontava o parco haver conquistado na gestão dos recursos com que viviam, ou seja, reclamava com o talhante, com o padeiro, com o merceeiro com o vendedor ambulante dos vegetais o preço dos seus produtos, já que, o soldo que o seu Jim arrecadava para casa era de vinte dólares por semana e só o custo da habitação … a renda de um apartamento mobilado que mais se assemelhava a um cortiço tinha o custo de oito dólares por semana … pelo que, o que amealhava, era um pouco ou um nada.
Della parou de chorar.
Ficou apática, diante da janela, observando um gato cinzento que circulava sobre uma cerca cinzenta que havia num quintal cinzento.
O Natal era no dia seguinte.
Della, tinha poupado o quanto pudera, durante meses, para comprar um presente para o seu Jim …
Passara horas planejando vir a compra algo fino e raro – algo, pelo menos, que fosse digno de ser pertença do seu Jim.
Num instante, como se um instante fosse um raio de sol, ela saiu da janela e ficou diante do espelho.
Seus olhos brilhavam mas, empalidecera em breves segundos, ao soltar desabridamente o seu cabelo, deixando-o, cair em todo o seu comprimento.
Jim e Della tinham dois bens dos quais muito se orgulhavam. Um deles era o relógio de ouro de Jim, herança do seu pai e de seu avô e o outro era o cabelo de Della … o lindo cabelo, ondulado e brilhante que se libertava em cascata de águas castanhas que lhe chegavam abaixo dos joelhos e quase lhe servia de vestido.
Prendeu-o de forma nervosa e sem delongas.
Cingiu-se com a velha jaqueta e pôs um velho chapéu.
Ela … com um flutuar de saias e com os olhos ainda cintilando as lágrimas que teimavam em ser pérolas … voou pela porta e desceu as escadas até à rua.
Deteve-se defronte de um portal que sustentava uma tabuleta …
** Madame Sofronie-Produtos de Todo o tipo para Cabelos **
Della subiu correndo pelas escadas e estacou, ofegante, diante de uma mulher corpulenta, branca e fria que mal parecia ser a Madame Sofronie do anúncio.
– Quer comprar o meu cabelo? Perguntou Della.
– Eu compro cabelos, disse a mulher. Tire o chapéu e vamos ver a aparência deles.
A cascata castanha, ao ser solta, ondulou-se …
– Vinte dólares, disse a mulher erguendo-se de forma displicente.
– Corte-os depressa e dê-me o dinheiro, pediu Della.
As duas horas seguintes voaram em asas cores-de-rosa … Della estava desmontando todas as lojas para comprar o presente de Jim.
Por fim encontrou o presente ideal.
Fora feito para ele e ninguém mais.
Não encontrara nada assim em todas as lojas que houvera revirado … era uma corrente curta de platina com desenho simples, na qual, se percebia o seu valor pelo metal e não por ornamentos exagerados.
Aquela corrente era digna do relógio do seu marido … era simples como todas as coisas o devem de ser.
O presente custou vinte e um dólares e Della regressou a casa com os seus oitenta e sete cêntimos.
Com esta corrente, no relógio, Jim poderia olhar as horas sem embaraço em qualquer lugar, já que, o fazia furtivamente pois usava uma velha tira de couro ensebada pelas mãos do seu avô e do seu pai.
Della chegou a casa e de imediato pegou no ferro de enrolar o cabelo e começou a trabalhar para amenizar e devastação causada pela sua generosidade, acrescida, do seu amor por Jim.
Em minutos a sua cabeça estava coberta de cachinhos curtos que a faziam parecer uma colegial cabulando num banco de uma escola.
Olhou o espelho rodopiando sobre a sua nova imagem murmurando … -Se Jim não me matar dirá que pareço uma corista de Coney Island. Mas que coisa poderia eu comprar com um dólar e oitenta e sete cêntimos ?!
Pelo fim da tarde o café estava pronto e a frigideira, sobre o fogão, aguardava pelas costeletas. Jim era pontual.
Della olhou uma vez mais a corrente para o seu Jim e com uma maior ternura e cuidado, envolveu-a, na bolsa de linho que de há muito tempo preparara e sentou-se num dos cantos da mesa.
Ouviu os passos de Jim vencendo as escadas de acesso ao primeiro andar …
A porta abriu-se … Jim entrou e fechou-a.
Jim era magro e estava sério … precisava de casaco novo …. e o frio pintara as suas mãos de um cinza esbranquiçado,
Jim parou e ficou tão imóvel e hirto, quanto, um cão de caça fixando a sua presa.
Seus olhos estavam fixos em Della com uma expressão que ela não conseguia decifrar e isso terrorizou-a. Não era … ira, surpresa, reprovação, horror nem um qualquer outro sentimento, para os quais, ela se preparara.
Ele, simplesmente a olhava, com aquela indecifrável expressão.
– Jim, não me olhe dessa maneira. Eu cortei o cabelo e vendi-o porque não podia suportar viver, o nosso primeiro Natal, sem lhe dar um presente.
Jim, o meu cabelo crescerá de novo … mais forte, mais exuberante e poderoso.
Você não se importa, não é?
Meu cabelo cresce depressa …
– Della, cortaste o cabelo? Questionou Jim, com esforço, como se não conseguisse entender aquela realidade.
– Cortei-o e vendi-o – respondeu-lhe Della.
Não gostas mais de mim?
Eu … sou eu, mesmo sem o cabelo e se é pelo cabelo que me queres bem … eu vou-me embora.
Jim… Não adianta procurá-lo, interpelou Della, vendi-o, está feito!
É véspera de Natal … seja bom para mim, eu vendi-o por você.
Talvez os cabelos da minha cabeça possam ser contados … um a um até às suas centenas e milhares … mas, ninguém pode calcular, o quanto bem lhe quero.
Posso fazer as costeletas?
Jim saiu de seu transe e sem mais palavras envolveu a sua Della nos braços e foram os abraços que amordaçaram as palavras que os lábios diziam.
Jim retirou do bolso da sua jaca um pacote e …
– Della, não há corte de cabelo, vestido, champô, seja o que for … que possa fazer com que eu goste menos da minha mulherzinha mas, se abrires este pacote, entenderás, a minha perplexidade…
Della tomou o pacote em suas mãos e nervosamente os seus dedos brancos e ágeis lutaram com a fita e com o papel.
A seguir, ela deu um grito de uma alegria exuberante ao que lhe sucedeu, numa rápida mudança, o porvir de lágrimas histéricas sendo necessário a Jim usar, de todos os seus poderes, para consolá-la.
Ali estavam os “PENTES” !!
O jogo de “pentes” que Della, desde que chegara a Nova York, mais cobiçava para serem usados nos lados e no puxo dos seus cabelos.
Eram uns “pentes” lindos feitos de casca de tartaruga, com pedras preciosas nas beiradas.
Eram caros muito caros e o seu coração muito os desejava, sem ter, contudo, a menor esperança de os vir a ter.
Ela, agora tinha os seus “pentes” mas os cabelos que por eles seriam adornados … tinham desaparecido.
Della apertou os “pentes” contra o seu peito e, por fim, com os olhos marejados e sorrindo murmurou como o faz um gatinho chamuscado …
– Meu amor, o meu cabelo vai crescer depressa.
OH! Meu Deus, exclamou, tome o seu presente …
Jim, abriu a bolsa de linho que Della costurara e dela retirou a corrente de platina, com a qual, o seu relógio de herança ganharia de novo o orgulho de outrora.
– Não é uma maravilha, Jim? Corri, toda a cidade para a encontrar. Agora já podes olhar, com entono, todas as horas do dia e por cem vezes que faças, por mil vezes, o farás diferente. Feliz Natal!
Jim, vamos ver como ela fica no relógio do teu avô, do teu pai e amanhã do teu filho.
Jim, em vez de obedecer, caiu sentado no sofá pondo as mãos atrás da cabeça e sorrindo por um encanto desencantado, disse…
– Della, vamos guardar os nossos presentes de Natal por algum tempo. São bonitos demais para usá-los neste momento.
…
Amor meu eu vendi o meu relógio de ouro, herança de meu pai e do meu avô, para poder comprar os seus “pentes”.
…
Acho que chegou a hora de pormos as costeletas na frigideira.
Jim e Della entregaram-se num abraço multiplicador desta sua história, onde, sacrificaram … um, pelo outro … os seus maiores tesouros.
Os Magos como sabemos eram homens sábios, muito sábios que levaram presentes para o Menino na manjedoura.
Eles inventaram a arte de dar presentes.
Gostaria de dizer aos sábios de HOJE que, de todos quantos já \deram presentes, Della e Jim foram os mais SÁBIOS.
Autor – William Sidney Porter
Adaptação de Albano Jorge
10 de Dezembro / 2023