Todos os anos, certamente há mais de 50, a noite de terça-feira de Carnaval é passada em Aguim da mesma forma: enterra-se o entrudo. É certo que esta não é uma tradição exclusiva desta aldeia do concelho de Anadia, mas será certamente onde se encontram as máscaras, disfarces e motivos mais assustadores de todos. Este ano não foi exceção e trouxe às ruas centenas de pessoas, uma enchente como nunca se viu.
A palavra “Entrudo” significa dar entrada, o começo ou o anunciar a aproximação da quadra semanal, sendo ainda muito utilizada no meio rural. É na Idade Média, em Portugal, que esta celebração de período carnavalesco se começa a notar. Apesar da época do ano, Entrudo não é Carnaval. Entrudo é Entrudo.
Os preparativos começam semanas antes. É preciso alguém que prepare o “morto”, os enfeites do “padre”, que pense nas sátiras e que chame as pessoas. Com anos com mais adesão e outros com menos, esta é uma das tradições que os guinatos nunca deixaram morrer (só morre mesmo o “defunto”).
Já durante a tarde muitos dos mascarados percorrem a aldeia assustando quem passa e pavoneando cartazes com sátiras. Estas dizem sempre coisas que ninguém quer ouvir. Ou os tiques de alguém, ou algum devedor esquecido, ou uma cobiça a mulher alheia. Nisto o Entrudo deixa-se levar pelo espírito do Carnaval: não é suposto ninguém levar a mal.
A noite começa no largo da Igreja e, ano após ano, o número de pessoas disfarçadas vai crescendo. Na mesma medida em que cresce o público que assiste. Não é suposto se desconfiar quem está mascarado. Maridos não reconhecem as mulheres, filhos não desconfiam quem são os pais, vizinhos são assustados por moradores da mesma rua. Quem vive na mesma casa sai por portas diferentes, veste-se escondido. Quase que se procura saber qual é a maior extravagância e há disfarces que são verdadeiras obras de arte.
Uivos e gritos é o que se ouve noite dentro. O cortejo fúnebre começa. Mascarados à frente, população atrás. A “via sacra” não se concretiza sem parar nos cafés da aldeia onde o combustível é um copo ou outro. Afinal, as máscaras, as almofadas por baixo das vestimentas e as várias camadas de roupa fazem calor. Além do mais, os vários cartazes de sátira e maldizer que se veem pendurados nas várias costas, fazem com que seja um fardo mais pesado.
O testamento é lido, as sátiras estão em todos os versos (não é regra que todos rimem) e os risos são ouvidos entre a população. Afinal não há aldeia que não goste de ouvir qualquer coisa do vizinho, melhor ainda se não se vir a cara. Os bens e pertences do “morto” são entregues a quem de direito, seja a herança boa ou má, e depois de distribuída água benta por todos, estamos em condições de avançar com o funeral.
O defunto (um boneco de trapos ou palha) é colocado a arder no pequeno largo em frente ao cemitério de Aguim e, assim, dá-se por terminada a missão de enterrar (ou cremar) mais um entrudo.
Os momentos que se seguem têm quase tanta magia como o início. É o destapar das máscaras. É quando se percebe quem fez as maiores brincadeiras, quem arreliou mais gente e, muitas vezes, quem não esperávamos encontrar. A tradição e curiosidade foi-se estendendo a terra vizinhas e já se encontram caras menos conhecidas. Não são todos de Aguim, mas quiseram fazer parte da história desta tradição.
Apesar da noite ir longa, ainda não terminou para todos. Apesar de muitos se recolherem às suas casas, muitos são os que fazem o caminho da “procissão” ao contrário e voltam a parar nos mesmos cafés. É assunto para conversas pela noite dentro e nem o dia seguinte de trabalho faz esmorecer o espírito de missão cumprida.