Nos últimos tempos temos sido inundados de notícias relativas aos níveis de (I)Literacia Financeira dos portugueses, ora porque são divulgados novos estudos e inquéritos das mais diversas entidades (OCDE, União Europeia, Banco de Portugal, entre outros), ora porque está na “moda” falar desta temática. Reconheço, inclusivamente, que esta tendência tem sido impulsionada por parte de algumas empresas que, nos seus departamentos de Recursos Humanos, identificaram há já algum tempo, que o bem-estar dos seus trabalhadores está intrinsecamente ligado com o seu respetivo bem-estar financeiro e a falta deste, conduz inevitavelmente, a quadros de stress e ansiedade (financeira) com impacto na sua saúde física e mental e, em última instância, na sua própria produtividade.
O retrato que aqueles estudos e inquéritos (Eurobarómetro “Monitoring the level of financial literacy in the EU” e “Inquérito à Literacia Financeira da População Portuguesa nos revelam é apenas um facto relevante e insofismável: padecemos de graves lacunas no que diz respeito a gerir o nosso dinheiro. O diagnóstico é ainda mais grave porque atravessa todas as gerações, com resultados desapontantes que têm como consequência nefasta, a perpetuação de uma sociedade composta por cidadãos, no geral, impreparados para tomar decisões financeiras relevantes que inevitavelmente todos assumirão ao longo da vida.
Pense-se, desde logo, na abertura de uma simples conta bancária e a disponibilização dos respetivos meios de pagamento (cartão débito/crédito, cheques, débitos diretos, etc.) ou na contratação de um crédito automóvel ou habitação ou mesmo na subscrição de um depósito a prazo. Isto para falar apenas nas operações mais banais.
Questiono-me, sabe o que é uma Ficha de Informação Normalizada Europeia? E a diferença entre a Taxa Anual Nominal Bruta e a Taxa Anual Nominal Líquida? Sabe o que é um Spread num Crédito Habitação? E já agora o que é a Taxa Euribor? Acredito genuinamente que o leitor já tenha sido confrontado com estes termos ou, pelo menos, tenha lido ou ouvido na imprensa.
Seria demasiado simplista abordar a temática da Literacia Financeira se estivéssemos a falar apenas destes “mínimos olímpicos”. Sendo assim, atrevo-me a questionar novamente o leitor: Quantos cidadãos sabem interpretar o seu recibo de vencimento? Quantos sabem como se apura o IRS que se irá pagar ou receber? Quantos sabem como se calcula (ou perspetiva) o montante a receber na reforma?
Ou seja, a Literacia Financeira, vai muito além das normais operações bancárias que todos fazemos inevitavelmente. Trata-se, outrossim, de dotar os cidadãos de conhecimentos básicos e essenciais para auxiliar a tomada de decisões conscientes e responsáveis durante as várias etapas da vida, sem comprometer o seu futuro.
No âmbito da minha atividade profissional tenho contacto com todos os agentes económicos (Instituições Financeiras, Empresas, Administração Pública e Cidadãos). Com todos eles, tenho exemplos práticos e concretos do custo da Iliteracia (ignorância) Financeira.
Juntos das Instituições Financeiras o cardápio é vasto. Desde logo, relatam-me os seus interlocutores, o galopante crescimento das fraudes financeiras por apropriação indevida de dados pessoais, por telefone, pela internet ou por furto de documentos; falsas propostas de aplicação de dinheiro com remunerações elevadas, através de contactos telefónicos, correio eletrónico ou outros meios digitais; ofertas de concessão de crédito por parte de particulares ou outras entidades não autorizadas pelo Banco de Portugal a fazê-lo.
As empresas têm outro tipo de problemas que se prende com a falta de preparação dos próprios gestores. Contextualizando: 99,9%3 do tecido empresarial português é constituído por PME’s. Dentro destas, 96,1% são microempresas, cerca de 3% são pequenas empresas e apenas 0,6% são médias empresas.
Seria intelectualmente desonesto, admitir que em todas estas PME o problema da iliteracia financeira é mais usual. Importa sim salientar que, em face da sua dimensão, frequentemente estas empresas não dispõem dos recursos humanos especializados e mesmo meios tecnológicos para lidar com a sofisticação da atividade financeira, essencial ao desempenho do seu negócio.
Por banda da Administração Pública os problemas são mais heterogéneos e de verificação ulterior. Quem não se recorda da subida expressiva da taxa de inflação nos últimos dois anos? Quem não se recorda, igualmente, da subida das taxas de juros oficiais decididas pelo BCE no âmbito da sua política monetária, com especial impacto na subida das taxas EURIBOR? Para facilitar o entendimento, muitas famílias sentiram por certo na pele o brutal aumento do custo de vida e o aumento das prestações mensais do(s) crédito(s). Empresas incluídas.
O Governo, em funções à época, foi obrigado a criar pacotes anti-inflação para acudir ao excessivo endividamento das famílias, que se estava a tornar, por esta altura, uma autêntica bomba atómica social. A certa altura, as prestações com créditos habitação, por exemplo, viriam a duplicar. O custo do famigerado cabaz alimentar, tão badalado nestes tempos conturbados, aumentava de semana em semana. Enfim, uma aflição para muitos cidadãos, em especial para os mais pobres.
Dentro destes pacotes anti-inflação estiveram medidas muito diversificadas, com um enorme custo para as contas públicas, sendo algumas delas de eficácia muito questionável… Cheques a todos os trabalhadores, meia pensão para os pensionistas, redução do IVA da eletricidade, IVA Zero no cabaz alimentar, moratórias nos créditos, fixação temporária da prestação de contratos de crédito à habitação, entre outras medidas.
Por último, os cidadãos são efetivamente quem mais paga pelos deficits de Literacia Financeira. Aliás, todos os exemplos que dei anteriormente são, inexoravelmente, causa e efeito disso mesmo. Cidadãos com baixos níveis de Literacia Financeira estão mais suscetíveis a tomar decisões financeiras menos responsáveis e sustentáveis.
Chegados aqui, importa sim cuidar de traçar uma rota para alavancar os níveis de Literacia Financeira dos portugueses.
No final do ano passado o Parlamento reprovou o Projeto de Resolução n.º 952/XV/2.ª que recomendava ao governo a preponderância devida à literacia financeira em contexto escolar e em concreto: Considerar incluir aspetos elementares de literacia financeira no currículo escolar do ensino básico de forma que todos os alunos estejam expostos aos mesmos independentemente das escolhas vocacionais que façam no ensino secundário; Incluir explicitamente a literacia financeira nas áreas de competências do Perfil do Aluno à Saída da Escolaridade Obrigatória. Recordo tristemente o sentido de voto que foi o seguinte: PS e BE votaram contra, o Livre e o PCP abstiveram-se. O PSD, o Chega, a Iniciativa Liberal e o PAN votaram a favor.
Ficou, pois, evidente para quem a educação económica e financeira dos cidadãos não é uma prioridade. As crianças e jovens têm na escola o local por excelência para grande parte das aprendizagens vitais ao nosso exercício pleno da cidadania, não descurando de todo o papel incomensurável da família. Quanto mais cedo tomarmos contacto com temas relacionados com a Literacia Financeira, naturalmente adaptados aos diversos ciclos de ensino, maior será o sucesso e mais rapidamente se verão resultados concretos deste processo de formação contínua.
Efetivamente, esta formação já faz parte da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, porém evidencia uma carência muito grande de conteúdos financeiros, económicos e até digitais, motivos bastantes para que se equacionasse de vez a criação de uma disciplina autónoma que abordasse estas temáticas. É que a formação financeira cada vez mais está correlacionada com a formação digital, atenta a sofisticação crescente dos serviços financeiros e a uma tendência universal da implementação quase exclusiva dos meios digitais.
Quanto aos adultos, a sua formação carece de políticas públicas e mesmo privadas conducentes à sua promoção. O Estado poderia fomentar a atribuição de um certo número de horas de formação financeira dentro da formação que as empresas têm de providenciar aos seus trabalhadores. As empresas, que já estão a despertar para esta necessidade, devem continuar ou começar a promover com maior cadência este tipo de iniciativas como parte da sua responsabilidade corporativa. O Instituto do Emprego e Formação Profissional, I.P. deveria reforçar a formação junto de populações mais vulneráveis, em particular, os desempregados, proporcionando a aquisição de competências para a sua integração no mercado de trabalho. As associações comerciais deveriam usar a sua capilaridade e contacto.
Já vigora desde julho de 2018 um Acordo de Cooperação celebrado entre o Conselho Nacional de Supervisores Financeiros e o IEFP, no âmbito do Plano Nacional de Formação Financeira privilegiado com os seus associados, para também elas promoverem ações de formação específicas para o seu público-alvo.
Por último, não podemos esquecer a população sénior que não raras vezes é também ela vítima de exclusão financeira e um alvo fácil para burlas e fraudes financeiras. Este grupo etário é aquele que também traz mais desafios do meu ponto de vista, para qualquer iniciativa de Literacia Financeira.
É aqui que os municípios e freguesias podem ter um papel verdadeiramente importante. Pela sua proximidade às populações, pelas sinergias evidentes com projetos de universidades seniores, bibliotecas municipais, Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS) e mesmo com as forças de segurança. Anadia, peca por não estar na linha da frente desta iniciativa pela promoção da Literacia Financeira, como já fazem alguns municípios de norte a sul do país.
Implementar uma política municipal de capacitação económica, financeira e digital para todos os grupos etários, deveria ser uma linha de ação prioritária e diferenciadora para um município que quer atrair e reter população. A responsabilidade de implementação de um verdadeiro programa de Literacia Financeira terá de ser inequivocamente partilhada e requer, igualmente, o empenho e proatividade de todos os setores da sociedade, como já elenquei não exaustivamente. Destarte, resta-nos esperar que com esta proposta, também o município de Anadia se preste a fazer a sua parte. Como diria o economista Sir Arthur Lewis: “Educação nunca foi despesa. Sempre foi investimento com retorno garantido.”
JORGE LOPES
Jurista no Banco de Portugal
Formador de Literacia Financeira