Opinião por Carlos Vinhal Silva: A Alma das Línguas

Quem gosta de ler e tem por hábito uma leitura frequente e assídua, facilmente compreenderá que, aquando da leitura de livros escritos numa língua que não a língua nativa ou num idioma perante o qual não apresentamos fluência ou que não dominamos o suficiente, a qualidade da tradução é quase tão importante quanto a qualidade do livro propriamente dito. Isto porque, quando lemos uma obra traduzida, por muito talentoso que seja o tradutor na sua arte, não estamos a ler a obra original com todas as nuances pretendidas pelo autor. Assim, não nos pode espantar o acerto que a máxima “uma tradução é uma traição” traduz: por muito boa que seja a tradução (e existem traduções excelentes) não podem nunca ser equiparadas ao texto original, precisamente por, em maior ou menor medida, se ter alterado a visão do autor.

Explicamo-nos melhor: quando lemos alguma obra traduzida e a comparamos ao trabalho original notamos que não é o autor que estamos a ler, mas antes a interpretação do tradutor relativamente à obra original. E é assim porque é impossível captar a essência das palavras originalmente escritas noutro idioma; e mais complicado ainda é traduzir essa essência para uma língua que, muitas vezes, não partilha sequer a mesma raiz linguística, cultural ou mesmo histórica. Pensemos, por exemplo, na palavra fado, uma palavra profundamente incrustada na tradição lusitana, mas que explicita algo que não é traduzível noutras línguas; ou, num exemplo mais badalado, pensemos em saudade, que tantos infrutiferamente tentam traduzir para outros idiomas, mas fracassam sempre nessa tentativa por não ser possível traduzir tudo o que a palavra saudade contém. Pensemos agora na palavra castelhana soledad, igualmente intraduzível para a língua portuguesa, precisamente por toda a carga histórica, social e cultural que lhe é intrínseca, apesar de muitas vezes julgarmos traduzir com sucesso esses termos, ficando, porém, sempre aquém da sua essência. E poderíamos referir muitas outras palavras de muitas outras línguas, mas que, pela nossa incapacidade de as compreender por estarmos tão envolvidos na cultura, na língua e na história desses povos, tampouco as saberíamos explicar convenientemente.

Portanto, não sendo o diz-que-disse nem resultado da mera tradição oral, é sempre necessária alguma cautela na hora de ler traduções. Não podemos contar com imersões linguísticas e/ou culturais em obras traduzidas: como dissemos, ficarão sempre aquém da essência da obra original. E, com isto, não pretendemos dizer que as traduções são fracassos, porque não o são, e são uma excelente alternativa (por vezes, mesmo a única possibilidade) de ler livros escritos em idiomas que não são os nossos. Mas, como apontámos, é preciso cautela nas expetativas geradas, requer-se atenção porque, de facto, toda a língua tem uma alma e a alma é sempre intraduzível.

 

Carlos Vinhal Silva

SUBSCREVA JÁ

NEWSLETTER

Este site usa cookies para melhorar sua experiência. Aceito Ler mais